RGM - O pricing, a rentabilidade e o dragão da inflação

Como a disparada da inflação tem impactado a rentabilidade das empresas, e algumas das soluções que elas têm buscado.


O ano de 2022 tem sido especialmente duro com relação a inflação em todo o mundo. As consequências da pandemia da COVID-19 na produção e consumo, a Guerra na Ucrânia, o risco de nova epidemia em virtude da varíola dos macacos, tudo tem pressionado os preços para cima. Seja por uma questão de custos maiores, seja por uma questão de demanda reprimida, os mais diversos setores da economia têm sido impactados por aumentos de preço de dois, ou até mesmo três, dígitos. Esse cenário não é diferente no Brasil, que ainda conta com um ambiente especialmente turbulento em função das eleições polarizadas deste ano. Mas como profissionais de pricing podem atuar nesse ambiente, de modo a minimizar os impactos da inflação?

 

Na semana passada estive em um hipermercado para comprar uma Coca-Cola sem açúcar. Verificando o preço das garrafas de 1,5L e de 2L, vi que o preço da garrafa maior era inferior ao da menor!!! Por mais que fosse um preço promocional, não existe nada que justifique tal situação. A explicação para essa distorção reside na inflação, que provoca situações de desequilíbrio como essa, provavelmente por um descompasso entre reajustes de preços e vendas, em função dos estoques na cadeia.

 

Na inflação, o shopper muda seus hábitos

A inflação é a corrosão do valor do dinheiro. Com uma mesma quantidade de Reais, empresas e pessoas conseguem comprar menos do que antes. Isso provoca uma série de mudanças nos hábitos de compra, que variam por categoria e, no caso das pessoas, por poder aquisitivo. Gente mais rica sofre menos o impacto da inflação, assim como produtos e serviços direcionados a ela. Em contrapartida, as classes média e baixa são as suas grandes vítimas, assim como as empresas em geral. As empresas, com o objetivo de proteger sua rentabilidade, aumentam preços, o que provoca uma queda na demanda e novos problemas na rentabilidade, além de impactar negativamente o seu fluxo de caixa. Quando buscam capital para aliviar seus problemas financeiros, encontram um dinheiro a taxas mais altas, em função das contramedidas normalmente executadas pelos Bancos Centrais para combater a inflação. Novamente a rentabilidade é afetada, gerando a necessidade de novos aumentos de preço, em um ciclo vicioso que normalmente termina em desastre. Esse processo é chamado de espiral inflacionária, e provoca grandes distorções no mercado. Ainda que aumentos de preço reativos à inflação possam proteger a rentabilidade das empresas em um primeiro momento, esses aumentos geram desequilíbrios que como consequência causam a queda da rentabilidade total da empresa.

O fenômeno da inflação não é algo novo na economia. Estudiosos em História Econômica apontam que pressões inflacionárias já eram vistas na Europa durante os séculos XVI e XVII, em função de uma demanda crescente provocada pela descoberta de ouro e prata nas Américas. Os preços de produtos vindos da agricultura, em especial, passaram a crescer, provocando desequilíbrios, que levariam à impactante inflação alemã de 1619-23. Situações similares foram especialmente importantes no século XX, como a hiperinflação da República de Weimar em 1923 e na Hungria em 1946, quando a inflação atingiu inacreditáveis 41.900.000.000.000.000%! No Brasil, muitos ainda hoje se lembram do terror dos aumentos de preço durante o governo Sarney, quando entre dezembro de 1989 e março de 1990 o país atingiu 82,4% de inflação ao mês, algo que só seria controlado pelo Plano Real em 1994. Infelizmente não é só nos livros de História que a inflação adquire contornos dramáticos. Em maio de 2022, o IGP-M acumulado em 12 meses (um dos índices de inflação) atingiu 10,72% no país. Se ainda inferiores aos 37,06% do ano móvel de um ano antes, e aos 58% atuais dos nossos vizinhos argentinos, um índice de dois dígitos é capaz de provocar imensos desequilíbrios no mercado.

Como os preços se movimentam em situações inflacionárias? Para entender isso, devemos primeiro compreender o comportamento do shopper. A Economia Comportamental tem mostrado que um comprador no mundo real é no seu dia a dia menos racional do que aquele descrito pela Economia Clássica e demais escolas tradicionais. Ao atribuir valor para bens e serviços, o Homo Economicus incorpora, por vezes desproporcionalmente, benefícios e sacrifícios emocionais. Isso favorece às marcas mais fortes, que por cair no gosto dos compradores acabam conseguindo cobrar preços mais altos. Claro que isso é mais verdade à medida que caminhamos de vendas B2G (business to government) e B2B para B2C e C2C, mas em todos os processos o fator emocional tem impactos. Pois bem, durante períodos inflacionários o Homo Economicus se aproxima do modelo clássico, se tornando mais racional em suas decisões. Na tentativa de manter seu poder de compra, o shopper abandona mais facilmente as marcas que costuma comprar, buscando alternativas mais econômicas com qualidade similar. Isso é feito ou através de experiências passadas com outras marcas, ou pela sua prova. Quem compra habitualmente a marca A experimenta a marca B, mais econômica. E se sente que essa é similar em desempenho, uma avaliação muitas vezes subjetiva, passa a adotá-la, e não raro permanentemente. Por isso períodos de inflação trazem riscos adicionais às marcas líderes.

A mudança de marca nem sempre é suficiente. Se a inflação persistir por tempos prolongados, é possível que as compras passem por um processo de downgrading (rebaixamento) de qualidade. O shopper sabe que está comprado um produto inferior, mas é o que cabe em seu orçamento. A decisão de compras passa a ser menos por valor e mais pela sua possibilidade de pagar pelo produto ou serviço. Vimos a triste realidade recente no Brasil, onde o aumento explosivo do preço da carne fez com que se fortalecesse o mercado de ossos bovinos para uso culinário, assim como de pés de frango e outros subprodutos em geral descartados nos açougues. Quando tratamos de bens duráveis, os comportamentos são ainda mais estranhos: inicialmente as pessoas postergam as compras, evitando desembolsos momentâneos não essenciais. Com o tempo, contudo, o movimento contrário pode acontecer, com o shopper adquirindo certos bens para se proteger da inflação. Esse fenômeno curioso foi exatamente o que aconteceu nos anos 80 e início dos 90 no Brasil, onde se comprava automóveis que, após algum tempo, eram revendidos por preços acima dos de aquisição, apesar do seu uso e envelhecimento no período. Com uma manutenção da inflação a níveis elevados, e com a evolução da economia circular, esse tipo de situação poderia voltar, e até mesmo se expandir para outros segmentos de duráveis, como vestuários, móveis e eletroeletrônicos.

 

As empresas se defendem

Como as empresas podem se proteger comercialmente durante processos inflacionários? Voltemos ao comportamento do shopper. Se ele é pouco sensível ao preço em determinada categoria, as empresas podem simplesmente repassar seu aumento de custos nos preços. A baixa elasticidade vai permitir um reequilíbrio econômico sem maiores traumas comerciais. Infelizmente, tal situação é muito mais uma exceção do que a regra geral. Algumas das maneiras mais comuns de se trabalhar a rentabilidade em situações de inflação significativa, ainda que nem sempre recomendáveis, são provocar um downgradingplanejado de marcas e da qualidade, ou aplicar técnicas de Revenue Management.

downgrading planejado de marcas é o uso inteligente de produtos secundários da empresa a preços menores do que os principais. É o que poderia ser feito, por exemplo, pela BRF. No pdv, a marca Sadia é vendida a preços superiores aos produtos da Perdigão, ambas marcas da empresa. Em um mercado normal, as técnicas de Revenue Management indicariam o objetivo de aumentar progressivamente as vendas dos produtos de maior preço, aumentando o preço e a margem geral da empresa. Em regimes inflacionários, contudo, trata-se muito mais de defender a rentabilidade do que aumentá-la. Aumentar espaços e concentrar esforços na marca mais econômica, ainda que possa provocar uma canibalização negativa, é uma maneira de proteger a rentabilidade total. Pior do que reduzir as margens por uma questão de mix de produtos e serviços é perder essas vendas para a concorrência. Mas isso deve ser feito com um estrito controle da participação da marca mais econômica nas vendas, evitando que se crie um monstro que, com o tempo, danifique de maneira significativa à marca principal. 

Buscando a manutenção dos preços ao consumidor, o downgrading de produtos tem sido uma prática recorrente no Brasil, e alvo de muitas críticas por parte dos consumidores. Ele se processa de duas formas: a redução do tamanho oferecido e/ou uma diminuição da qualidade do produto. Na redução de tamanho tivemos caixas de sabão em pó Omo reduzindo de 1kg para 800g, embalagens de molho de tomate saindo de 150g para120g e caixas de fósforo saindo de 240 para 200 unidades.  Já sobre a diminuição da qualidade dos produtos, nos últimos dias muita coisa saiu nas redes sociais sobre o lançamento da mistura láctea condensada de leite, soro de leite e amido Moça, em embalagem com marca e códigos visuais similares aos utilizados pelo tradicional leite condensado. Esse fenômeno de downgradingdurante a inflação para se manter o pricing (e a rentabilidade)inalteradoé conhecido como Reduflação. Tais mudanças são legais, sempre que corretamente informadas aos consumidores, com base na Portaria n° 81 do Ministério da Justiça (23.01.2002) e no Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078 de 11.09.1990). Podemos assumir que empresas sérias como a Nestlé não mudariam a composição de produtos sem se basear em tecnologias que permitam essa mudança sem perda significativa de desempenho. Mas isso não as livra de inúmeras reclamações de consumidores que se sentem, de alguma forma, lesados. Tais práticas deverão, portanto, ser evitadas, sob risco da imagem das marcas e empresas ficarem danificadas.

Já o uso diferenciado de aumentos de preço por canal pode ser uma boa saída para as empresas. Um mesmo cliente possui diferentes sensibilidades a preço dependendo do canal em que compra. Aumentando as vendas em canais de menor elasticidade é possível um crescimento do preço médio da empresa com um menor impacto na demanda. Essa técnica de pricing tem sido utilizada com sucesso por algumas empresas, mostrando que técnicas de Revenue Management podem ser ao mesmo tempo simples e eficazes na defesa da rentabilidade e no combate ao dragão da inflação.

A inflação ainda vai demorar algum tempo para retornar a níveis de um dígito, as pressões de aumento de custos vão continuar, as dificuldades de renda das pessoas devem se manter por mais algum tempo. O ambiente externo vai continuar desafiador. As empresas vão lutar para defender suas posições de mercado e rentabilidade. Cada empresa vai escolher um caminho a seguir, mas ninguém deverá ficar parado!


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FONTES

Uchoa, Pablo. “Como se resolveram os 5 maiores episódios de hiperinflação da história.” Serviço Mundial da BBC(16 setembro 2018). https://bbc.com/portuguese/internacional-45358463 (acessado em 30 de maio de 2022).

Paas, Martha W. The Kipper und Wipper Inflation, 1619-23: An Economic History with Contemporary German Broadsheets.New Haven (CT): Yale U Press, 2012.

Souza, Felipe de. “Produtos seguem diminuindo tamanho, e qualidade também cai, dizem clientes.” UOL Economia(30 maio 2022). https:economia.uol.br/noticias/redacao/ 2022/05/30/reduflacao-saiba-como- esse-conceito-afeta-diretamente-o-seu-bolso.htm (acessado em 01 de junho de 2022).



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